O ESPAÇO DO BRINCAR E DO CORPO
NA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Prof. Ms. Liana Cristina Pinto Tubelo1
A inclusão escolar é um tema que desperta polêmica e desacomoda aqueles que estão ainda amarrados às antigas práxis pedagógicas. Fato que demonstra o pouco conhecimento e preparo que a comunidade docente possui no que tange à teoria/ prática do exercício pedagógico direcionado ao aluno com necessidades educacionais especiais. Por isso, a educação inclusiva se constitui, hoje, em uma das principais preocupações quanto a adequação da escola às necessidades desses alunos, ao acolhimento e estratégicas didático-pedagógicas para que promovam o desenvolvimento e aprendizagem global dos mesmos.
Essa nova realidade educacional vem se apoiando nos princípios democráticos dos direitos sociais, defendidos na Constituição Federal Brasileira de 1988, resultando na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases n° 9.394/96, que recebeu influência marcante da Declaração da Educação como Direito de Todos, celebrada em Jomtien na Tailândia, em 1990 e a Declaração de Salamanca publicada em junho de 1994, na cidade de Salamanca por ocasião da Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais.
De fato, o tema inclusão escolar está aí, emerge de nosso cotidiano educacional/social há muito tempo e, nós educadores/ sociedade, é que insistimos em padronizar nossos alunos. Engano cruel de nossa parte, uma vez que somos “todos” diferentes e não aprendemos da mesma forma. Frente a esta constatação, o brincar se torna uma ação emancipadora dos estigmas e estereótipos, assim como um instrumento de aprendizagem relacional no que diz respeito a aproximação dos desiguais, tornando-os pares na brincadeira, no jogo e nas representações sociais de faz-de-conta.
Foi apoiado neste enfoque inclusivo que o Projeto SER (Saber, Experimentar e Recuperar), vem desempenhando suas atividades e pesquisas com crianças em séries iniciais, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Cícero da Silva Brogni, em Capão da Canoa, RS. Este projeto se encontra, atualmente no seu terceiro ano consecutivo, trabalhando com alunos que possuem necessidades educacionais especiais com evidências psicopedagógicas, cognitivas, psicomotoras ou comportamentais de suas limitações no que se refere à assimilação de conhecimentos formalizados pelo currículo escolar. Assim, todas as crianças integrantes do projeto encontram-se em defasagem idade-série.
No ano de 2009, o Projeto SER atendeu 35 alunos no período compreendido entre maio e dezembro, sendo que os mesmos frequentavam seu turno de aula regular pela manhã e permaneciam na escola para almoço e atividades psicomotoras, lúdicas e pedagógicas até às 15 horas, durante dois dias semanais. Os espaços oferecidos para a realização do projeto são a Brinquedoteca “Brincando se aprende”2 e sala para psicomotricidade. Envolveram-se no projeto, a equipe diretiva, supervisão e orientação pedagógica, pedagoga, um educador físico (psicomotricista) e a presente pesquisadora que é educadora física, brinquedista e psicomotricista.
As atividades lúdicas oferecidas eram manipuladas de forma exploratória possibilitando autoria de pensamento e criatividade e a evolução das capacidades e habilidades dos estudantes inseridos no projeto, que aconteciam mediante jogos e brincadeiras de apreciação dos alunos para que essas habilidades (analisar, resolver, observar, descrever, avaliar, criar, transformar, construir, conviver) fossem exercitadas. Nos encontros com o psicomotricista, os alunos exercitavam a convivência social e experiências corporais lúdicas (dança, os jogos de roda, de expressão corporal). Esses espaços promovem estímulos para o desenvolvimento dos fatores psicomotores (tonicidade, praxias ampla e fina, equilíbrio, lateralidade, noção de corpo e estruturação espaço-temporal), bem como das funções psicológicas superiores (atenção, memória, pensamento, imaginação e linguagem) de VygotsKy (1988). Mensalmente os alunos eram avaliados pedagogicamente e esses resultados eram levados às reuniões de equipe com o psicólogo, refletiam sobre as ações realizadas.
Questionou-se com o projeto: como o brincar e a psicomotricidade poderiam auxiliar na construção do conhecimento escolarizado de crianças que apresentam necessidades educacionais especiais?
Vygotsky (1988), Le Boulch (2001), Negrine (2002), bem como teorias desta pesquisadora, publicadas em Tubelo (2006)3, sustentaram o projeto. Ao final do ano letivo obteve-se a aprovação de 71% dos alunos participantes do projeto para a série seguinte.
As investigações confirmam que brincar promove interação entre os participantes e ajustamentos às práticas culturais de cada sujeito da ação, dessa forma, aprende-se na relação com o outro e na cumplicidade, o que acarreta segurança, prazer, curiosidade e instiga à construir conhecimento com o outro/no outro; que a experiência do corpo fortalece e promove descobertas e quando ela é compartilhada, abre-se uma via no despertar da consciência do novo e do mundo; sendo o brincar, uma forma de linguagem que comunica o que sou com o mundo e isso acontece de modo espontâneo, podendo ser uma chave para se chegar ao conhecimento e a forma de interagir com o aluno de NEEs4.
Com deficiência ou não, toda a criança brinca, fantasia, faz-de-conta, simboliza, cria, se diverte. Vygotsky (1988) ressalta porém que, se ignoramos as necessidades da criança e os incentivos que são eficazes para colocá-la em ação, nunca seremos capazes de entender seu avanço de um estágio do desenvolvimento para outro, porque todo avanço está conectado com uma mudança acentuada nas motivações, tendências e incentivos.
No intuito de promover resultados positivos em relação aos índices de aprovação escolar, discutindo formas de estimular o aluno, as práticas produzidas na escola e a importância da psicomotricidade lúdica no desenvolvimento das capacidades e habilidades gerais de alunos com NEEs, durante o processo de inclusão na escola regular, percebeu-se o quanto a “escola do século XXI” ainda se estrutura em velhos modelos educacionais. As formas de avaliação, de ensino, de currículo não estão adequadas ao referido processo.
A escola do século XXI5 deve se qualificar não apenas na parte físico- estrutural de acessibilidade para as NEEs, mas sobretudo, mudar o seu “olhar pedagógico”, tornando-se, professores e alunos, parceiros na busca por vivências que autorizam descobertas, onde o aluno é, conforme Alícia Fernandez (2001), um aprendiz-ensinante na relação com seu professor, um ensinante-aprendiz.
1Professora Mestre em Educação /PUCRS, Especialista em Ciências do Movimento Humano-FEEVALE/RS, Educadora Física/UFRGS, Psicomotricista, Brinquedista.
E-mail: lianatubelo@hotmail.com
2Brinquedoteca que existe na escola referida desde 2006, afiliada à Associação Brasileira de Brinquedotecas e que atende semanalmente cerca de 500 alunos entre encontros lúdicos que fazem parte da grade curricular das séries iniciais e projetos de recuperação de aprendizagem.
NEGRINE, Airton. O corpo na educação infantil. Caxias:
Editora,UCS, 2002.
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TUBELO, Liana C. Pinto. O brincar e a psicocinética: construção
do vocabulário lingüístico, escrito e psicomotor da criança. Revista
Teoria e Prática da Educação, Maringá, v. 9, n. 1, p. 31-43, 2006.
VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
4Necessidades Educacionais Especiais.
5A escola atual deve estar baseada nos quatro pilares para a Educação do Século XXI (aprender a conhecer, ser, fazer, conviver) conforme Jacques Delors em Educação: um tesouro a descobrir. SP: Cortez, 1996.
SER BRINQUEDISTA
Prof.Ms.Liana Pinto Tubelo1
O conjunto de ações do brinquedista é voltado para a criação das melhores condições para um brincar de qualidade: ambiente atrativo e acolhimento afetuoso; mas o que diferencia o seu comportamento de outros adultos, é a visão do brincar que ele transmite ao longo do seu desempenho, valorizando a atividade como um todo, sempre baseada no prazer da criança. Se o jogo é abandonado, não vai forçar a criança a termina-lo. Não emite julgamento sobre a escolha que for feita: brincar com a Barbie não é menos importante do que jogar um dominó. Desta forma, o bom brinquedo não pode ser definido. O brinquedista situa-se em relação a outras dimensões alem da aprendizagem.
Na Brinquedoteca, a dimensão lúdica deve ser privilegiada e, para que isso aconteça, o brinquedista precisa ter a compreensão do fenômeno que extrapola o brincar e que não tem necessariamente, que provocar aprendizagem. Sua ligação com a estimulação do desenvolvimento é tão global que não pode ser considerada por aspectos específicos. Tem a ver com alma, com poesia, com emoção, com amor, não como sentimento de um para com outro, mas como sensação, como uma forma respiração que é absorção da experiência que está sendo vivida, como satisfação de um anseio existencial.
A maioria das definições sobre o que é BRINCAR, é reduzida, não alcança todas as suas possibilidades, não contempla sua transcendência; são simplórias na sua preconceituosa visão científica. Sabemos que a criança brincando aprende, sabemos que desenvolve potencialidades, sabemos como constrói conhecimentos no seu brincar mas, é hora de lembrar que, a Brinquedoteca não é uma sala de aula. A ludicidade gera um tipo especial de convivência.
Antes de poder ser brinquedista, o candidato tem um longo caminho a percorrer, que começa sobre uma reflexão profunda sobre a abrangência do brincar. Tentando explica-lo, tentando descrever os horizontes que ele atinge, chegaremos a aspectos difíceis de definir conceitualmente. Esbarraremos em limites que, como a margem de um rio, nos fazem perceber que existe alguma coisa do outro lado. É preciso tentar explicar o brincar para perceber sua abrangência e, para fazer isto corretamente, é preciso ter alma de poeta.
Com o objetivo de auxiliar o desenvolvimento das atividades, intervindo quando necessário, propondo ações, mediando o conhecimento e, de maneira geral, democratizando o brincar para diferentes grupos sociais, existe a presença de um brinquedista. Trata-se de um profissional cuja formação não é específica, isto é, oriundo da educação física, da Pedagogia, das Artes, da Psicologia, da Terapia Ocupacional, da Biblioteconomia, da Matemática, da Enfermagem, do Serviço Social, da Dança e do Teatro, ou até mesmo, ser uma pessoa sem formação profissional específica, mas que tenha recebido capacitação para trabalhar com crianças nestes locais.
Independentemente do imperativo da formação acadêmica, segundo Negrine (2000) é fundamental que este profissional possua três tipos de formação: a primeira é a “teórica’’ (conhecer e refletir sobre os conceitos teóricos); a segunda é a ‘‘pedagógica’’ (saber intervir na prática) e a terceira é a ‘‘pessoal’’ (“gostar de brincar” e ter vivido experiências nesta área).
Os objetivos da brinquedoteca também delineam-se e diferenciam-se de acordo com a formação da equipe de recursos humanos que organiza o projeto. Intencionalmente ou não, esses profissionais perpassam, através de suas atividades e intervenções, as idéias e os conhecimentos que se consolidaram em sua formação profissional.
Se faz necessário que a formação acadêmica ou a capacitação provejam conhecimentos teórico-práticos capazes de desenvolver no brinquedista habilidades e competências que orientem o seu trabalho na brinquedoteca. Desse modo, possibilitando-lhe ser capaz de entender, valorizar e apreciar o brincar da criança. Além disso, deve ser uma pessoa que goste do quê faz e seja capaz de admirar e valorizar sentimentos que aparecem no cotidiano da criança. ‘‘Seja uma pessoa com sensibilidade, entusiasmo, determinação, dinamismo, que chora, que ri, que canta e que brinca’’ (Santos, 1997, p.100)
O brinquedista deve ser um profissional que saiba intervir quando necessário. ‘‘Ao adulto cabe intervir através de sugestões, propostas, estímulos e reforços’’(Silva, 2001, p.154), entretanto e para tanto, ele precisa se preparar. Por outro lado, deve-se fazer o possível para que a presença do adulto não altere completamente o brincar da criança. Quando estiver por perto, ou diretamente brincando com a criança, ele deve tornar-se um parceiro na brincadeira. ‘‘O desafio do adulto reside em construir uma relação que permita à criança ser agente da sua própria brincadeira, tendo na figura dele um parceiro de jogo que a respeita e a estimula cada vez mais ampliar seus horizontes’’(Oliveira, 2000, p.32). Consideramos ser este um dos desafios dos adultos ao lidar com o mundo infantil: a linha tênue que separa as necessidades do mundo adulto e aquilo que ele acredita ser importante para a criança no desenrolar do ato de brincar.
Para sabermos quais as características necessárias para tornar-se um brinquedista, nos embasamos na literatura de Negrini (1997) onde são destacados três pontos a serem desenvolvidos junto a um profissional que trabalhe com atividades lúdicas. São elas: a “‘formação teórica’’, segundo a qual o brinquedista dever ter uma compreensão sobre o desenvolvimento das crianças e as teorias dos jogos, bem como sobre as suas interrelações; a ‘‘formação pedagógica’’, na qual é de fundamental importância a vivência das ações na prática, fazendo com que tudo aquilo que fora compreendido na teoria, seja relacionado em suas ações, um fenômeno que conhecemos como práxis; finalmente, segundo ele, a mais importante, a ‘‘formação pessoal’’, cuja idéia é permitir ao profissional a vivência das brincadeiras e dos jogos com os quais ele irá trabalhar, para torná- lo capaz de explorar e sentir as emoções ou reações que a criança poderá ter ao participar da brincadeira, entendendo assim suas necessidades e interesses.
Finalizando, referimos Negrine (1997, p.92) novamente ao dizer que o brinquedista é “aquele que deve ser preparado, não apenas para atuar como animador, mas também como observador e investigador”.
Pretendeu-se salientar aqui, a importância da utilização de um olhar mais atento e crítico dos adultos, principalmente dos brinquedistas, sobre a forma de dialogar com o brincar das crianças, evitando transferir- lhes precocemente a vida adulta através desta vivência, como revela Santim: “Sua sensibilidade lúdica fica restrita a sensibilidade lúdica do adulto’’(1997, p.30).
Bibilografia
NEGRINE, A. Brinquedoteca: teoria e pratica. Dilemas da formação do brinquedista. In: SANTOS, S.M.P. dos (org.) Brinquedoteca: o lúdico em diferentes contextos. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 83-94.
OLIVEIRA A. C. O brincar, a criança e o adulto. In: RODRIGUES, R.P. (org.) Brincalhão: uma brinquedoteca itinerante. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 29-34.
SANTIM, S. Educação Física – alegria do lúdico à opressão do rendimento. Porto Alegre: EST/ESEF, 1994.
SANTOS, S.M.P. dos (org.) Brinquedoteca: o lúdico em diferentes contextos. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 83-94 e p. 97-100.
SILVA, M.C. Projeto institucional: psicomotricidade relacional, desenvolvimento e aprendizagem de crianças portadoras de necessidades especiais e normais. In: SANTOS, S.M.P. dos (org.) A ludicidade como ciência. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 141-156.
1Mestre em Educação/PUCRS, Educadora Física/UFRGS, Brinquedista/ABBri
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